Redenção: Its coming home
…canta a torcida inglesa que o futebol está voltando para a casa – Football’s Coming Home, na letra original.

A canção ‘Three Lions’, de Frank Skinner e David Baddiel, fora criada para a Euro de 1996, sediada na Inglaterra, e que marcava exatos 30 anos desde o título, também em casa, dos britânicos na Copa do Mundo de 1966. Não sabiam eles, porém, que haveria ainda muito mais fila a se esperar: na oportunidade, a campanha parou na trave de Andersen, no quase de Gaiscone, nas mãos de Kopke, que pegou o pênalti de Southgate, e num Wembley com um ensurdecedor silêncio diante da Alemanha nas semifinais. Era uma constante: desde o hat-trick dourado de Geoff Hurst contra a mesma Alemanha e no mesmo Wembley, a equipe não alcançava uma final sequer.

As decepções acumularam-se após aquela Euro, tanto dentro do continente quanto nas Copas do Mundo. O trauma de Portugal, das quartas e dos pênaltis em 2004 e 2006, um endiabrado Ronaldinho em 2002, a Alemanha e o irônico gol que não valeu de Lampard em 2010, o desastre no Grupo da Morte de 2014, a gelada Islândia de 2016.
Uma geração de craques, uma das mais técnicas na história do país, que sucumbia, longe de quebrar o tabu das finais, a cada tentativa. Beckham, Ferdinand, Terry, Scholes, Gerrard, Lampard, Rooney. No final das contas, a safra pendurou as chuteiras e, para 2018, já 22 anos depois da traumática Euro em casa, a torcida resolveu reviver a música, que embalou a equipe para a Copa do Mundo de 2018.

O muro da final acabaria seguindo de pé por um fio, seguro com galhardia por Mario Mandzukic e pela Croácia, mas a campanha deixava a sensação de novos ares.
Uma nova geração, trabalhada e fortalecida desde as categorias de base começou a aparecer, enquanto novos ‘veteranos’ se consolidaram como líderes da equipe – dentre os quais, Kyle Walker, Jordan Henderson, Raheem Sterling, Harry Maguire, John Stones e o capitão e artilheiro do time, Harry Kane.
No banco, o mesmo Gareth Southgate do pênalti decisivo em 1996 figurava para espantar seus demônios e mesclar sua espinha dorsal com promessas e jovens como Rashford, Foden, Sancho, Mount, Saka, Rice, Philips, Grealish, Shaw Bellingham e companhia.
Aproveitando o mando de campo durante praticamente toda a Euro, a Inglaterra logo despontou como candidata ao título. Taticamente, Southgate deu preferência ao 4-2-3-1, deixando de lado a linha de 3 zagueiros, utilizada com frequência após a Copa de 2018.
Ainda assim, escolhas de pouco desempenho durante a última temporada e lesões geraram críticas às opções do treinador ao longo da campanha: Southgate, por exemplo, não pode contar com o goleiro titular, Nick Pope, cortado por lesão no joelho – Jordan Pickford, camisa 1 na Rússia, voltou a assumir a meta.
Henderson, um dos capitães do elenco, sofreu com as lesões durante o ano, o que promoveu Declan Rice e Kalvin Phillips à titularidade. Mas a aposta mais comentada, certamente, foi a de Sterling.
O camisa 10 pouco foi utilizado por Guardiola no Manchester City durante a temporada 2020/21 e, dizem, tinha as malas prontas para negociar com o Arsenal.
Mais do que isso, sequer parecia a altura de desempenhar nível semelhante ao de seus concorrentes de posição. Mas o tempo seria amigo de Southgate e do atacante nascido na Jamaica.

Na fase de grupos, os gols dos magros 1×0 sobre Croácia e República Tcheca seriam de autoria de Sterling. Nas oitavas, logo de cara, dois traumas em um só: a Alemanha, invicta em torneios oficiais desde 1966 contra a Inglaterra, e a própria semi de 96, uma vez que o Wembley outra vez era o palco.
No final das contas, Sterling outra vez e Kane, com valiosas participações de Shaw e Grealish, acharam o caminho das redes e das quartas. Em Roma, um passeio diante da Ucrânia confirmava a mudança de chave e de status britânico. Era hora de quebrar o muro das finais, e de buscar a redenção após tantos insucessos. Na semifinal, pela frente a sensacional Dinamarca.
Pega logo de cara pelo terrível drama com Christian Eriksen, a Dinamarca construiu uma das histórias mais fantásticas da Euro 2020. A plausível derrota para a Finlândia – acompanhada, diga-se, da insensibilidade brutal da UEFA – acompanhada da cruel, essa dentro de campo apenas, para a Bélgica, deixaram a equipe à beira da eliminação.
A partir daí, a arrancada foi imparável: 4×1 na Rússia para alcançar o mata-mata, 4×0 sobre País de Gales nas oitavas e um suado 2×1 na República Tcheca credenciaram os Vikings à Wembley e à semi.
A divertida e dinâmica equipe de Kasper Hjulmand usou como base o 3-4-1-2, com o experiente Schmeichel no gol, o trio de zaga de Christensen e Vestergaard, experimentados na Premier League por Chelsea e Southampton acompanhados do capitão Simon Kjaer, o meio de Hojbjerg e Delaney com o ótimo Maehle – um dos melhores jogadores da Euro – pela esquerda e Wass e Styger revezando a titularidade na direita.
Completando a equipe, o jovem e talentoso Damsgaard, o esforçado Braithwaite e Dolberg comandando o ataque. Na semi em Wembley a Inglaterra até começou melhor, mas logo a Dinamarca controlou a partida. O jogo, tenso por natureza, veria Damsgaard acertar um balaço para abrir o placar, de falta, pouco antes de Kjaer empatar, contra, no esforço para evitar o gol de Sterling.
Na etapa derradeira, a Inglaterra foi pra cima, sufocou mas parou em Schmeichel. Na prorrogação, o panorama se acentuou ainda mais, até que a arbitragem achou um pênalti – inexistente, convenhamos – de Maehle em Sterling. Com drama, Kane perdeu o pênalti mas aproveitou o rebote de Schmeichel para colocar a Inglaterra numa final pela primeira vez em 55 anos.

RECONSTRUÇÃO: ITS COMING ROME…
..canta a torcida italiana, aproveitando, em forma de trocadilho o sucesso do rival na decisão: o futebol está voltando para Roma.

Seria uma cereja perfeita no topo do bolo Azzurri. Perdida na noite brilhante de 9 de julho de 2006 em Berlim, com exceção a um esporádico brilho impulsionado por Balotelli na Polônia em 2012, a squadra viveu derrocada como poucas em sua história nos últimos anos.
Ainda que dispondo da metade final da carreira de diversos craques, a equipe sofria cada vez mais das evoluções e revoluções do mundo da bola, capitaneadas por Pep Guardiola, Barcelona, Vicente del Bosque, Espanha e a cultura da posse de bola incessante batizada de ‘tiki-taka’.
O estilo italiano, na contramão da moda e tendência mundial a partir do final da primeira década do século XXI, era de muita solidez defensiva, comandada por gente do calibre de Gianluigi Buffon, Fabio Cannavaro, Alessandro Nesta, Gianluca Zambrotta, Daniele De Rossi, Andrea Pirlo, Genaro Gattuso e companhia, além de meia atacantes de enorme qualidade técnica contrastando com os ‘caneludo-artilheiros’, envolvendo aí nomes como os de Alessandro del Piero, Francesco Totti, Antonio Di Natale, Alberto Gilardino, Fábio Quagliarella além de Luca Toni, Filippo Inzaghi, Mario Balotelli e posteriormente, Amauri.

A receita de defesa forte + ataque mortal, claro, obsoleta de tudo, acabou arrastando a Itália para baixo. Nas Euros, justiça seja feita, a equipe até andou bem. Mas as eliminações acabariam traumáticas: em 2008 e 2016, os pênaltis nas quartas de finais diante de Espanha e Alemanha, respectivamente, interromperam o sonho.
Em 2012, uma campanha sublime, com nomes como Pirlo e Balotelli em jornadas espetaculares acabou em vexame: um surreal e incontestável passeio da Espanha em Kiev e o 4×0 na decisão formou outra cicatriz gigantesca no coração italiano. Nada, porém, comparado ao que as Copas do Mundo reservaram ao país no período.

Em 2010, um grupo que, em nomes pouco risco inspirava – Paraguai, a estreante Eslováquia e a Nova Zelândia, de longínqua participação em 1982, ano do tri Azzurri. Como atual campeã do mundo, era obrigação dos comandados de Marcelo Lippi a liderança da chave.
Contudo, o barco italiano naufragou: empates em 1×1 contra Paraguai e Nova Zelândia, uma derrota dramática para a Eslováquia e, longe da vaga ou da liderança, a equipe amargou a lanterna do grupo e a eliminação precoce. Quatro anos depois, no Brasil, o grupo era o ‘da morte’, e o encontro logo de cara contra a Inglaterra, terminado em 2×1, deu a perspectiva de normalidade.
Mas aí, a zebra judiou da Azzurra outra vez: 0x1 diante da Costa Rica e o ‘matar ou morrer’ diante do Uruguai em Natal terminou favorável à Celeste, com direito à mordida de Suárez.
Veio então 2018 e a maior das decepções italianas. Superada outra vez por sua grande antagonista em estilo e resultados no período, Espanha, a Itália caiu na repescagem para enfrentar a Suécia por uma vaga no mundial da Rússia. Na ida, em Solna, vitória sueca pela contagem mínima.
Na volta, em um San Siro abarrotado, a Azzurra tentou muito mas falhou em transpor a ótima marcação escandinava. No final, 0x0 e pela primeira vez desde a Copa de 1958 – curiosamente, disputada na própria Suécia – a Itália se viu fora do maior torneio de futebol do planeta.
Era o absoluto fundo do poço. Era necessária uma reconstrução, em nomes e em identidade. Para a missão, acabaria selecionado o ex-jogador da Azzurra, Roberto Mancini.

Com Mancini, a equipe se reergueu. Um conjunto mais versátil, que gosta mais da bola, e melhor estruturado dentro de campo deu lugar ao time pouco inspirado de outrora, ainda que sem uma grande estrela, do ponto de vista individual.
Nomes como Chiellini, Bonucci, Insigne, Jorginho, Verratti e Immobile se juntaram a novas caras como as de Donnarumma, Barella, Chiesa, Locatelli, Berardi e Di Lorenzo e uma sólida base acabou formada, com destaque absoluto para a desenvoltura na construção de seu jogo e para a força enorme na marcação alta, sufocante para qualquer adversário, grandes deficiências da Azzurra dos vexames da década de 10.
Não à toa, para a estreia na Euro, a base era posta pela primeira vez à prova, mas carregando 27 jogos de invencibilidade.
No teste inicial, uma Turquia que trazia consigo um brilhante início de eliminatórias para a Copa do Mundo. Um primeiro tempo difícil, amarrado pelo ferrolho vermelho à frente da área, o desafogo no escorregão de Umut Meras e no cruzamento de Berardi que, desviado por Demiral achou a rede e um estádio em erupção viu a Itália amassar: Immobile meteria o segundo na rede e Insigne fecharia a conta.
Nas rodadas seguintes, outro passeio diante da Suíça (3×0) e uma vitória tranquila com time misto em cima do País de Gales (2×0) transformaram a Azzurra na grande sensação da primeira fase. Vistosa, envolvente, prolífica, vencia, convencia e encantava.

No mata-mata a história colocaria sua pitada de drama na mistura. Diante da Áustria em Wembley, um domínio na primeira etapa virou um jogo de enorme dificuldade, até Chiesa e Pessina acharem o caminho da rede, já na prorrogação.
Haveria tempo para Kalajdzic findar a sequência invicta de Donnarumma, mas a Azzurra seguia para Munique, onde uma titânica “final antecipada” diante da Bélgica, semifinalista da Copa que a Itália assistira pela TV, fora travada com final feliz para os comandados de Mancini novamente por 2×1, cortesia de Barella e de um golaço de Insigne. Encantando e também sabendo sofrer, a Itália mantinha sua base cultural defensiva, agora aliada ao jogo com a bola no pé para encarar em Wembley a, outrora Kryptonita, Espanha.
Passando por renovação de elenco, a seleção espanhola levou para a Euro novos talentos como os de Pedri, Dani Olmo, Eric Garcia, Pau Torres, Unai Simón e Ferrán Torres, todos abaixo dos 24 anos de idade, além de contar com velhos conhecidos do ciclo de ouro e seus resquícios, Busquets, Jordi Alba, Koke e Morata.
Com Luís Enrique, o 4-3-3 potencializava a capacidade espanhola de retenção de bola. Com um toque de até certa forma irônico, a Espanha se utilizou da posse, tão amiga da Itália na Euro, para evaporar o jogo e o ímpeto azzurri na semi em Wembley.
Ainda assim, seria a Itália a primeira a achar o caminho da rede, com Chiesa. Dani Olmo e Morata, em tabela espetacular empatariam e a vaga, decidida apenas nos pênaltis teria brilho de Donnarumma, e de uma cobrança espetacular de Jorginho, na cobrança derradeira: vaga garantida.

REDENÇÃO BRITÂNICA x RECONSTRUÇÃO ITALIANA
A final deste domingo marca o encontro das duas melhores equipes do torneio – ainda que as semifinalistas Espanha e Dinamarca sejam dignas de notas e tenham passado muito perto da decisão. Mais do que isso, a partida deste domingo coroará, com troféu, uma das duas histórias que marcaram o renascimento das duas equipes.
A Inglaterra, que tenta se livrar da pecha de amarelona, parece unir um trabalho de base como poucos no planeta com uma espinha dorsal muito competente.
Tem, em Harry Kane, um centroavante completo, que arma e finaliza, marca e assiste, e ótimos nomes à seu redor: destaque, nesta Euro, para Sterling, Grealish, Phillips e Shaw, no plano ofensivo. Na defesa, o sistema parece sólido e confiável, capitaneado por Maguire – o gol de Damsgaard, na semifinal, foi o primeiro sofrido pela equipe no campeonato.
A Itália, por sua vez, não abre mão de seus ‘craques da defesa’, ainda que o destaque seja a versatilidade ofensiva da equipe. Não tem, claro, o machucado Spinazzola, o que limita até mesmo o ótimo trabalho de seu 10, Insigne. Mas em Chiesa possui força, explosão e capacidade de decisão com a bola, no meio um trio completo, tanto na circulação da posse quanto na pressão alta com Jorginho, Verratti e Barella, além de mais 2 reservas de altíssimo nível para reposição, Locatelli e Pessina.
A tendência é de uma partida nervosa, onde a briga do domínio no meio do campo será primordial. A Itália, pelo jogo mais vistoso e pelas camisas e elenco que enfrentou nas quartas e semifinais, fora o próprio histórico, soa mais inteira do que a Inglaterra para a decisão.
Mas o time inglês dispõe de mais peças de reposição, enfrentou uma única vez a prorrogação contra duas da adversária e claro, jogará em sua casa, no Wembley. De qualquer forma, uma final aberta, e com enredo de sobra para ser contado para o futuro.
